16.10.05

Ó vizinha dê cá música

De tão fielmente repetido, o gesto agarrou-se às manhãs de sábado com a força de um hábito antigo: cá por casa, o primeiro a saltar da cama vai até à porta da rua e abre-a o suficiente para deixar caber a mão e agarrar o saco pendurado no puxador do lado de fora. Lá dentro, um casqueiro alentejano bem cozido e ainda quente.

Pode acontecer que nesse dia vá trabalhar, que saia pouco depois apenas para comprar jornais ou partir ao encontro dos prezados companheiros para uma vez mais nos fazermos à estrada. Pode acontecer que simplesmente volte para dentro e me aplique a mandriar com o afinco de um atleta de alta competição. Podem acontecer muitas coisas na alvorada de um sábado, mas há duas que sempre se repetiram religiosamente, permitindo ao meu espírito amanhecer com a paz de uma certeza cavaquista: o meu pai deposita na minha porta um dos três pães da Vidigueira comprados trinta segundos depois do senhor Chico abrir as portas do minimercado; e a minha estimada vizinha de baixo dedica-se às lides da casa na companhia da sua amiga Celine Dion, frustrando a minha pretensão de prolongar o sono.

Até que, abrupta e sem aviso, a mudança chegou. É sabado. Salto da cama, arrasto uns passos descalços até à porta da rua, jogo a mão e pesco o saco. Lá dentro, o quilo prometido. Mas eis então que sou sacudido pela inesperada infidelidade da minha estimada vizinha: lá em baixo, uma voz masculina inunda hoje os metros cúbicos que antes eram coutada da estridente canadiana. Detenho-me em silêncio enquanto me esforço por reconstituir as feições dessa presença grave e familiar... mas que raio faz o Duarte Macias no meu prédio?!

Há umas semanas, toda a minha vizinhança descobriu os sons de Terra de Abrigo e o condomínio nunca mais foi o mesmo. Ao sábado, abro a porta de mansinho para apanhar o pão da Vidigueira e logo uma horda de alentejanos me invade a casa. E já cheguei a mandar-me calar a mim mesmo para conseguir dormir mais um pouco.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Ia agora preparar-me para a estreia do cobertor outonal na minha caminha quando me chamaram a atenção para esta casqueiral e alentejana prosa.
Vou-me deitar mais bem disposto.

domingo, outubro 16, 2005 11:44:00 da tarde  

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