5.3.08

Setenta anos a soprar na gaita



Decidiu tocar harmónica mais ou menos na mesma altura em que Hitler decidiu ocupar os Sudetas. Toots Thielemans tinha 16 anos quando pela primeira vez prestou atenção ao som que haveria de o acompanhar para o resto da vida. “Foi num filme, não me recordo o nome... o personagem estava no corredor da morte, à espera de vez para subir à cadeira eléctrica, e tocava harmónica.” Dois anos depois, a paixão pelo jazz descobria-o em Bruxelas, mais ou menos pela mesma hora emque as tropas alemãs entravam na cidade. “Foi a ouvir um disco de Louis Armstrong, isso lembro-me bem. Tornei-me músico durante a ocupação nazi”, recorda, 68 anos mais tarde, numa entrevista que teve a delicadeza de concender a este vosso amigo.

“É para a rádio? Não? É que se fosse eu tocava umas notas. Mas está a gravar? Então posso tocar?” Com certeza que sim. “Obrigado.” E assim o que se esperava ser uma entrevista transforma-se numa aula prática de 70 minutos sobre a história dos últimos setenta anos da música popular. Toots saca da gaita e toca uma passagem de Samba de Uma Nota Só, depois outra de Wave, só para explicar porque é que “Tom Jobim era um génio: consegue ouvir? Está cá tudo. Miles Davis, o bebop de [Thelonious]Monk, tudo nesta frase...” Quem o diz deve saber. Porque Toots tocou e gravou com Miles, Monk e Jobim. E com Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Benny Goodman, Roy Eldrige, George Shearing e Oscar Peterson, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Elis Regina, Quincy Jones, Paul Simon, Billy Joel, Chico Buarque, Caetano Veloso e Pat Metheny e toda a gente de todos os tempos e idades com quem se cruzou nas últimas sete décadas.

Volta a ouvir-se a harmónica. Agora é uma melodia de Ivan Lins, Começar de Novo. “Bonito, não acha?” Bonito, sem dúvida. “Pois é. Sabe, eu comovo--me facilmente. A música hoje em dia tem muita cabeça, muita mão, mas pouco coração. Tenho pena disso. Para mim, sem sentimento não faz sentido. E é fácil aparecer-me uma lágrima ao olho quando toco La Vie en Rose, por exemplo.” E é La Vie en Rose que agora soa no auscultador do telefone.

Depois de todo este tempo, importa perceber como convivem a idade e a virtude. “A idade muda-nos muito. Sabia que eu tive um enfarte? Todos achámos que ia ser difícil eu voltar a tocar...” Sim, sabia... mas isso foi há 24 anos. “Quantos?!” Vinte e quatro. “Pois foi!... tem razão. Como o tempo passa!” Volto à carga porque a questão impõe-se: que diabo se pode esperar ouvir da gaita de um velho asmático de 86 anos? “Respondo-lhe assim: se o Picasso voltasse a pintar o mesmo tema 40 anos depois, certamente o traço seria diferente, menos preciso e virtuoso. Mas continuava a ser Picasso, de alma e coração. O Toots também continua a ser o mesmo, só que em câmara lenta”, riu-se. E o segredo, revelou-o numa gargalhada igualmente lenta, é simples: “onde antes tocava três notas, agora toco só uma. Mas faço sempre o possível por escolher a melhor.” Voltou à harmónica e a despedida fez-se ao som de Ne Me Quitte Pas.

Tive o privilégio de conhecer Jean ‘Toots’ Thielemans pessoalmente há três anos, da última vez que passou por Lisboa. Conversámos longamente por telefone e, mais tarde, a seu convite, cara-a-cara no final de um espectáculo memorável. Desde então conto com mais um herói na minha caderneta pessoal de afectos e admirações. Vou revê-lo amanhã à noite, às 21.00, no CCB. E achei por bem partilhar isto.

6 Comments:

Blogger cbarata said...

E fizeste tu muito bem. Já cá faltava uma lengada de prosa

quarta-feira, março 05, 2008 10:49:00 da tarde  
Blogger Marinho said...

Obrigado por partilhares. Bela história.

quarta-feira, março 05, 2008 10:50:00 da tarde  
Blogger Marinho said...

Isto é que é rapidez,aqui dos colegas,amigos...

quarta-feira, março 05, 2008 10:52:00 da tarde  
Blogger Oliveira said...

É verdade.

quarta-feira, março 05, 2008 10:54:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ao ler este post sobre Toots Thielemans lembrei-me de outro monstro Hermeto Pascoal. E sem querer dei com uma entrevista dele que se enquadra a 100% naquilo que penso sobre a 'discussão' entre a edição dum cd como investimento e os downloads que proliferam por esta internet. Sublinhio esta passagem (sic)' Mesmo o meu trabalho em gravadoras, o povo tem mais é que piratear tudo. Isso não é revolução. O que queremos é mostrar essa música universal. Porque isso não toca em rádio nem aparece na capa do jornal. Sabe o que Deus falou? Muita gente pensa que é só para transar. Mas, não. “Crescei e multiplicai-vos”. Isso é em todos os sentidos. Vamos crescer na maneira de ser e multiplicar o que tem de bom. Sem barreiras. A música é universal. Eu toco no mundo inteiro e é sempre lotado. Eu só cheguei a isso porque os meus discos são pirateados, estão à vontade na Internet.'
Aqui está um depoiemento totalmente realista aos tempos actuais. Mas sempre passível de discussão.
Para quem queira ler a entrevista aqui fica o link:
http://www.queimabucha.com/?pagina=noticias&idn=82&p=8

Abraço

sexta-feira, março 07, 2008 1:07:00 da tarde  
Blogger cbarata said...

Obrigadinho por mais esta do Guilherme Almeida.

terça-feira, março 11, 2008 6:11:00 da tarde  

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